Foto: Carlos Santos - www.dancastradicionais.net
Artigo publicado em Agosto de 2012 no site "Mundo Açoriano" (infelizmente extinto em 2015):
Se a Sapateia não der,
P’ra acalmar minh’alma inquieta,
Estou p’ró que der e vier,
Nas voltas da Chamarrita.(1)
Mais um Verão ilhéu que chega ao fim. Mais um Verão a compensar nostalgias, a
afagar raízes, a adiar imaginados projetos pátrios para regressar aos braços de
outros projetos e de outras pátrias que nos vão conquistando o terreiro da
vida.
Mais um aeroporto, mais um avião, mais uma partida, a alma a bailar ainda na
inquietude das chamarritas e a ouvir os versos dolentes da “Chamateia”.
O meu alento vai e vem.
Como as vagas de mar que amaciam as fragas adormecidas dos vulcões e o canto
das cagarras, que fica a ecoar na memória. Até daqui a um ano.
De festa em festa, e fazendo jus à fama que ganhei em adolescente – “só quer é
folia” – persegui chamarritas pelas ilhas do Pico e do Faial durante o mês de
Agosto, com a cumplicidade do meu irmão, também há muito contagiado pela
alegria do “balho” mandado. O calendário do Verão constrói-se em função destes
momentos.
Não surpreende que para aquietar as almas dos ilhéus tenha que ter surgido uma
doce alegria como a das rodas da Chamarrita. Percorremos a ilha em busca dessas
gentes que bailam, dessas coreografias e tradições que se transmutam a cada
quilómetro galgado. Do Pico para o Faial e de novo para o Pico, partimos em
busca de uma mesma alegria: o vício de “bailar”.
Os “mandos” podem ser ditos por um homem ou uma mulher – estas esforçando-se a
plenos pulmões por se fazer ouvir pelos bailadores – podem ser mais energéticos
ou mais ardilosos, mas um bom ritmo é fundamental. Vamos conhecendo os
mandadores, os seus estilos, e aprendendo a par e passo as variantes das
coreografias, em justa homenagem à “rainha das danças”, como lhe chamam no Sul
do Brasil.
As palavras podem surgir supresas na hora, podem perder-se no bulício da festa,
são diferentes para dizer “entra senhores” e “quebra para trás” - querendo
significar o mesmo exato movimento - ou iguais mas querendo significar voltas
diferentes. É preciso ter “olho vivo” quando a nossa tradição é outra, e
corremos o risco de ser desmascarados como forasteiros quando baralhamos tudo e
o mandador lança “água fora!”. E aí os “mandos” e os passos outrora tão
certeiros desfazem-se em gargalhadas jocosas e ao mesmo tempo cúmplices. As
deles e as nossas próprias.
Dependendo da origem dos bailadores, músicos e mandadores, o ritmo pode ser
mais frenético ou mais compassado, mas a alma chamarriteira é sempre essa mesma
a unir estes rochedos perdidos no meio do Atlântico. “Tudo baila!”,
“Chamarrita!”, “só no Céu!”. Como que ébrios e esquecidos do mundo, embarcamos
nesta dança.
A Chamarrita está na moda. Não há festa de Verão, da Semana do Mar às populares
festas das freguesias e das pequenas povoações da costa, que não tenha uma ou
duas noites de chamarritas no programa. Ilhéus de todas as idades, emigrantes e
turistas, a todos contagia este vício de bailar. É um vício que não se explica,
que se sente nos primeiros acordes da viola, que nos faz esquecer o tempo e
perder o rasto ao cansaço.
É dança que se segue ao trabalho, é folga, é folia. E hoje é folia para todos,
em que cada qual espanta os males que entender. Uma folia que se traz na alma e
que fica a bailar-nos por dentro, incansável, no terreiro das nossas vidas.
Carla Gomes
(1) Excerto da canção “Chamateia”, letra e música de Luís Alberto
Bettencourt e António Melo e Sousa