03 dezembro 2014

Alma de Chamarrita



 
Foto: Carlos Santos - www.dancastradicionais.net

Artigo publicado em Agosto de 2012 no site "Mundo Açoriano" (infelizmente extinto em 2015):


Se a Sapateia não der,

P’ra acalmar minh’alma inquieta,
Estou p’ró que der e vier,
Nas voltas da Chamarrita
.(1)

Mais um Verão ilhéu que chega ao fim. Mais um Verão a compensar nostalgias, a afagar raízes, a adiar imaginados projetos pátrios para regressar aos braços de outros projetos e de outras pátrias que nos vão conquistando o terreiro da vida.

Mais um aeroporto, mais um avião, mais uma partida, a alma a bailar ainda na inquietude das chamarritas e a ouvir os versos dolentes da “Chamateia”.

O meu alento vai e vem.
Como as vagas de mar que amaciam as fragas adormecidas dos vulcões e o canto das cagarras, que fica a ecoar na memória. Até daqui a um ano.

De festa em festa, e fazendo jus à fama que ganhei em adolescente – “só quer é folia” – persegui chamarritas pelas ilhas do Pico e do Faial durante o mês de Agosto, com a cumplicidade do meu irmão, também há muito contagiado pela alegria do “balho” mandado. O calendário do Verão constrói-se em função destes momentos.

Não surpreende que para aquietar as almas dos ilhéus tenha que ter surgido uma doce alegria como a das rodas da Chamarrita. Percorremos a ilha em busca dessas gentes que bailam, dessas coreografias e tradições que se transmutam a cada quilómetro galgado. Do Pico para o Faial e de novo para o Pico, partimos em busca de uma mesma alegria: o vício de “bailar”.

Os “mandos” podem ser ditos por um homem ou uma mulher – estas esforçando-se a plenos pulmões por se fazer ouvir pelos bailadores – podem ser mais energéticos ou mais ardilosos, mas um bom ritmo é fundamental. Vamos conhecendo os mandadores, os seus estilos, e aprendendo a par e passo as variantes das coreografias, em justa homenagem à “rainha das danças”, como lhe chamam no Sul do Brasil.

As palavras podem surgir supresas na hora, podem perder-se no bulício da festa, são diferentes para dizer “entra senhores” e “quebra para trás” - querendo significar o mesmo exato movimento - ou iguais mas querendo significar voltas diferentes. É preciso ter “olho vivo” quando a nossa tradição é outra, e corremos o risco de ser desmascarados como forasteiros quando baralhamos tudo e o mandador lança “água fora!”. E aí os “mandos” e os passos outrora tão certeiros desfazem-se em gargalhadas jocosas e ao mesmo tempo cúmplices. As deles e as nossas próprias.

Dependendo da origem dos bailadores, músicos e mandadores, o ritmo pode ser mais frenético ou mais compassado, mas a alma chamarriteira é sempre essa mesma a unir estes rochedos perdidos no meio do Atlântico. “Tudo baila!”, “Chamarrita!”, “só no Céu!”. Como que ébrios e esquecidos do mundo, embarcamos nesta dança.

A Chamarrita está na moda. Não há festa de Verão, da Semana do Mar às populares festas das freguesias e das pequenas povoações da costa, que não tenha uma ou duas noites de chamarritas no programa. Ilhéus de todas as idades, emigrantes e turistas, a todos contagia este vício de bailar. É um vício que não se explica, que se sente nos primeiros acordes da viola, que nos faz esquecer o tempo e perder o rasto ao cansaço.

É dança que se segue ao trabalho, é folga, é folia. E hoje é folia para todos, em que cada qual espanta os males que entender. Uma folia que se traz na alma e que fica a bailar-nos por dentro, incansável, no terreiro das nossas vidas.

Carla Gomes

(1) Excerto da canção “Chamateia”, letra e música de Luís Alberto Bettencourt e António Melo e Sousa


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